O estudante se prepara pelo desejo do conhecimento ou pela necessidade de uma capacitação; o casal visualiza um futuro melhor ao estabelecer uma família e procura os meios para realizar o seu projeto. Quem fez alguma obra sabe as dificuldades que aparecem, as quais demandam uma vontade férrea para tornar aquilo que era só um propósito, um objetivo distante e abstrato, em algo factível e concreto. Entre o propósito e a sua realização está o projeto. Sem ele, o caos domina e nada assegura que o fim será atingido; ele estabelece ordem. Pois quando o acaso reina, tudo decai. Quem já jogou xadrez, construiu um castelo de cartas ou uma casa sabe a diferença entre ter um projeto e não ter.
Entretanto, um projeto em si não basta. Outro elemento precisa entrar em jogo para torná-lo exequível: as ferramentas, o aparato prático para a transformação. A disponibilidade das ferramentas delimita as possibilidades de projetos, as quais, por sua vez, delimitam os propósitos que podem ser alcançados. Para um ser capaz de projetar, tais limitações estimulam a criatividade para a elaboração de novas ferramentas, que ampliam os projetos e propósitos. E nós, como seres criativos, temos repetidamente provado essa afirmação verdadeira, ao metamorfosear as matérias primas cruas que encontramos na natureza em sofisticadas tecnologias. A nossa experiência neste planeta é limitada no espaço e no tempo. Chegamos aqui sem possuir conhecimento consciente prévio algum e rapidamente percebemos as dificuldades e as delícias desta experiência mundana. Nos damos conta de que somos mais do que nossas necessidades orgânicas e embarcamos na jornada de construção de nosso conhecimento pessoal. Recebemos, pelo ensino formal, diferentes linguagens para interpretar o mundo: matemática, ciências naturais e humanas, música, entre tantas outras. A complexidade de nossa sociedade permite que seus participantes se dediquem a diferentes ocupações. Alguns têm o desejo e a oportunidade de produzir conhecimento, conhecidos como cientistas; outros produzem tecnologias com base no que já foi descoberto; a maioria se dedica à produção de bens e serviços.
Independente do papel ocupado na sociedade, atualmente todos são conscientes do que a organização da ciência e da tecnologia levaram a experiência humana a outro patamar: telefone, geladeira, computador, satélite, remédios-alguns exemplos de invenções humanas baseadas nesse conhecimento que perpassam nosso cotidiano. Os avanços do saber científico e da tecnologia têm levado as ferramentas a um nível muito superior àquele do século XIX: a descoberta da eletricidade permitiu que usemos, a baixo custo, energia naturalmente disponível em lugares distantes simplesmente estendendo um cabo de transmissão; a automação permitiu que delegássemos tarefas a máquinas e robôs. Em diversos momentos de nossa história, somaram-se a criatividade e a capacidade, e o resultado foi uma tecnologia que mudou a vida humana. Ainda assim, apesar da complexidade de tais inventos, nenhum deles se compara à intrincada associação de processos que compõe a mais simples forma de vida. Isso levanta a pergunta: quais as origens da vida? Ela existiu desde sempre, surgiu a partir de seu ambiente ou foi projetada e criada? A resposta padrão da maioria dos cientistas atuais remete a uma poça de água a partir da qual as "moléculas da vida" se auto-organizaram e formaram um ser primordial, o ponto de partida para a diversificação da vida. Contudo, um número crescente de cientistas, com base em evidências, desafia essa narrativa. Além de apontar as inconsistências da proposta da origem da vida a partir de matéria inanimada, eles reconhecem que os processos que viabilizam a existência de seres vivos demonstram um nível de complexidade que revela uma concepção prévia pra o surgimento da vida.
Projeto
O projeto se antecipa à ação; em verdade, o projeto guia a ação-etimologicamente, "pro" remete à ideia de precedência, enquanto "iacere" significa "fazer". O objetivo é o resultado da ação, que pode demandar uma série de passos, e um bom projeto antecipa os pontos críticos que ocorrerão e apresenta soluções para resolvê-los. De acordo com a complexidade, é necessário um empreendimento colaborativo, com etapas de pesquisa ou desenho até o objetivo final ser alcançado. Eventualmente o resultado das primeiras etapas não permite visualizar o fim e requer um dispêndio de energia e recursos cuja utilidade será revelada somente nas etapas subsequentes. Os cientistas da área da Química elaboram os seus projetos visando conhecer os fenômenos naturais, melhorar a qualidade de vida humana ou aprimorar processos já conhecidos. Um grande projeto é dividido em projetos menores, pois, para sintetizar sequer a mais simples das moléculas, é necessário separar os reagentes, providenciar os equipamentos para a síntese e saber como definir a identidade molecular e a pureza do produto formado. Da mesma forma como na construção de uma casa é necessário planejamento e pensamento prévio, para definir o correto posicionamento do piso, paredes, telhado, fios, portas e janelas, os processos químicos demandam conhecimento e planejamento. Enquanto uma construção com projeto e planejamento tem sucesso, uma sem projeto e aleatória resulta apenas em desperdício do material e da energia disponíveis, com resultado que de forma algum se assemelha a uma casa.
Para o desenvolvimento de um projeto, são necessários quatro elementos: material, energia, tempo e informação. Jacques Monod (1910-1976), biólogo e Prêmio Nobel de Medicina de 1965, aponta em seu livro Acaso e Necessidade “que todos esses elementos estão presentes de forma conjunta nas células: todas as atividades que contribuem para o crescimento e multiplicação dessa célula são interconectadas e intercontroladas, diretamente ou não". A analogia com a construção de uma casa é um ponto de partida útil também para a compreensão da estrutura de um ser vivo. Estruturalmente, um ser vivo apresenta limites, compartimentos externos, aberturas, fiação interna (microtúbulos), tratamento de resíduos, geração de energia; entretanto, os controles são mais sofisticados que aqueles encontrados em qualquer edificação humana. Após uma casa ser construída é possível olhar para trás e visualizar o seu projeto? Porém o nosso objeto de estudo não é uma casa, mas sim a vida terrestre, e para analisá-la vamos nos aprofundar nas transformações químicas presentes nos seres vivos. Identificação do Projeto Por ter a capacidade de elaborar projetos e colocá-los em prática, o ser humano está em posição privilegiada para reconhecer a existência de um projeto por trás de algo. Definir um problema e propor uma solução faz parte de nosso cotidiano. Por exemplo, para beber água de uma fonte, fazemos uma concha com as mãos, retemos o líquido nesse formato e o bebemos. O movimento não é inato; ele resulta da observação de que a forma de concha retém líquidos. Somos capazes de realizar essa associação de forma muito rápida. Podemos ser mais eficazes, por exemplo usando uma cumbuca ou desviando água e construir um aqueduto, elevando-a por meio de uma bomba elétrica, retendo-a em um enorme compartimento impermeável e trazendo-a para a comunidade. Ao deparar-nos com uma ferramenta, somos capazes de perceber o projeto, mesmo que pensemos "não tenho a mínima ideia para que serve, mas foi feito para alguma coisa".
A relação entre a forma e função de algo é a chave para a identificação de um projeto. Em muitos casos, pode ser que conheçamos a função, mas a diferença entre a forma de um objeto modificado pelo homem e suas formas brutas são tão dramáticas que resulta evidente a existência de um projeto. Um ser humano comum que vê um acelerador de partículas não percebe sua função, mas reconheceria que aquela parafernália serve para algum propósito. Além disso, a finalidade não precisa ser meramente utilitária: ao observar a Mona Lisa ou ao escutar um concerto de Bach, reconhecemos a estética que perpassa a obra. Essa questão recorrente sobre a capacidade humana de identificar um objeto como produto de planejamento é sublimada por Monod. Ele imagina seres de outro planeta pousando sobre uma região da França e comparando objetos inanimados brutos com aqueles trabalhados pelo homem até reconhecer a modificação provocada por um ser inteligente. O recurso de nos posicionarmos como seres de outro planeta é útil para abordar essa questão, porque usa uma visão ingênua para descobrir o que se passa na Terra, de forma distante daquela perspectiva que nós utilizamos para identificar algo como produto de um projeto, e traz uma capacidade implícita dos extraterrestres de se deslocar pelo Universo, algo que requer uma inteligência capaz de projetar naves espaciais e de reconhecer a atividade de outro ser inteligente. Nós também atuamos com essa visão, como alienígenas, quanto entramos em ambientes desconhecidos em nosso planeta ou exploramos material arqueológico e reconhecemos, nos objetos rústicos que encontramos, a capacidade humana de produzir ferramentas. Se os alienígenas tivessem chegado no Período Paleolítico, poderiam ter encontrado uma pedra lascada com uma borda afiada como nosso ápice tecnológico. Essa pedra tem forma muito semelhante e composição igual à do material que a originou, mas é possível identificar a função de cortar a pele de um animal abatido, mesmo que os extraterrestres (e a humanidade atual) nunca tenham usado uma pedra dessa forma. Por sua vez, os minerais se apresentam externamente em uma forma bruta, porém possuem ordenamento em sua estrutura cristalina. Nesse caso não é possível atribuir uma função específica a este mineral, o que descarta a existência de um projeto. A mesma percepção ocorre quando nos deparamos com as máquinas moleculares presentes em nossas células, como a ATP-sintase; as proteínas-motor, que funcionam como nossas autoestradas intracelulares; os poros que regulam concentrações iônicas em nossas células. Existe uma função para estas máquinas biológicas, suas formas, sua localização e sua composição-todas essas características são adequadas para a realização de sua atividade-fim. As ciências da natureza não possuem capacidade nem intenção de atribuir um projeto a esse fato. Entretanto, a maioria dos cientistas reclama essa atribuição ao negar a existência de um projeto e afirmar que as leis que regem a natureza não necessitam a invocação de um propósito ou de um legislador; da mesma forma como alguém pode descobrir o mecanismo de funcionamento de um automóvel e negar a intenção de locomoção e a existência de um projeto ou projetista.
Propósito
Ao observar uma ferramenta simples, como um martelo, é possível distinguir suas partes - o cabo é adaptado à mão e transmite o movimento produzido por ela para a cabeça, desenhada para golpear o prego. Nesse caso, existe uma relação entre o projeto do martelo e um propósito imediato: cravar o prego na madeira. Contudo, existem propósitos que não são imediatos nem determináveis a partir da ação direta. O propósito envolve as intenções do projetista, que não são necessariamente desveladas quando um observador se depara com o projeto. É possível usar o martelo para fixar um quadro ou construir uma casa, e a diversidade de usos de um martelo vem da utilidade do seu objetivo final: fixar coisas usando pregos. O desenho da ferramenta está relacionado ao seu uso, e uma pessoa com um mínimo de treino reconhece essa relação. Sabemos, pela nossa natureza humana, que o propósito final está oculto na mente do projetista, e, para determinar esse propósito final, é necessário obter essa informação dele. Assim como o objeto nem sempre revela o projeto, o projeto nem sempre revela a intenção. Como explica John Lennox, se Tia Matilde assa um bolo, é possível submetê-lo à análise científica, separar e determinar seus componentes, especificar as reações químicas que ocorreram. Em suma, podemos saber tudo o que o bolo é. Ainda assim, os cientistas encarregados da pesquisa não poderiam determinar por que Tia Matilde assou o bolo.
As estruturas presentes em seres vivos também revelam essa relação entre função e desenho. A estrutura macroscópica dos seres vivos e suas funções são comparáveis a máquinas, porém a forma de construção é distinta: enquanto máquinas e ferramentas são moldadas de fora para dentro, seres vivos são construídos de dentro para fora.
Os biólogos reconhecem a relação entre a função e a estrutura dos seres vivos, mas a maioria nega o propósito e segue a ideia exposta por Monod: "A pedra angular do método científico é o postulado de que a natureza é objetiva". Em outras palavras, a negação sistemática de que o conhecimento "verdadeiro" pode ser alcançado pela interpretação de fenômenos em termos de causas finais-isto é, de "propósito". Este tipo de afirmação resulta em uma questão incontornável, uma vez que a ausência de propósito também é um axioma não científico e, por isso, não-falsificável, o que também contraria o método científico. Este não é objetivo por não ter finalidade, mas sim por não se manifestar a respeito do assunto. Atribuir metafísica a um mero método é um erro conceitual. É necessário reconhecer que o método científico opera na escala referente à formulação de hipóteses e à realização de experimentos. Avançar além de suas limitações corrompe o próprio método científico.
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